terça-feira, 2 de outubro de 2012

Do adeus

Não gosto de despedidas, mas sei que as há. Não gosto da carga da palavra "adeus", mas sei que todos os dias é dita e sentida por alguém.

A minha avó morreu há um mês. Ainda não consegui pronunciar isto em voz alta. É uma realidade, um facto consumado, não há volta a dar e eu sei; mas de alguma maneira, do saber ao assumir vai uma distância dolorosa.
A doença de Alzheimer matou a mulher que a minha avó era há já uns 4 anos. Começa-se por deixar a comida queimar frequentemente, depois perde-se a noção das horas, adormece-se 1h durante a tarde e parece que se dormiu uma noite inteira. Confunde-se a filha com a mãe, não se sabe o nome da neta que esteve sempre ali, não se há memória de ter jantado ainda há 10min atrás. Não se sabe o que se faz com a carteira na mão nem o que se ia comprar. Não se consegue formar uma frase. Não se sabe que o marido morreu há 14 anos e chora-se ao ouvir isto como se a notícia fosse dada pela primeirissima vez. Depois não se sabe o nome daquela coisa que está ao lado do... daquilo... E não se sabe mais nada. A cama passa a ser o único poiso porque as pernas já não sabem andar.
Se eu pensar friamente, só o corpo dela agora partiu porque a essência já cá não estava. Mas pensar friamente não é comigo, pelo menos no que toca a isto.

Com a partida dela, partem memórias minhas. Não há cenários felizes da minha infância onde ela não esteja. Deu-me mais mimo do que a minha mãe (reza a lenda que é assim que tem de ser), dava-me maçãs assadas no forno de lenha sempre que eu pedia e fazia o melhor arroz de tomate com panadinhos do mundo. Ensinou-me a fazer leite creme. Chorava por mim se me via nervosa com um exame da faculdade e dizia-me sempre: "Rezei por ti, minha filha. Vai correr tudo bem." Quando eu não vinha a casa todas as semanas, pelo telefone tinha uma voz trémula "Quando vens? Tenho saudades". E eu também tinha. Mas agora tenho mais.

Fernando Pessoa escreveu que "na natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma." Concordo. O sol há-de continuar a nascer todos os dias, os dias vão ter as mesmas 24h, a Terra vai continuar redonda, a rotina vai instalar-se; mas os meus dias transformaram-se. Falta-me ela, o sorriso que nestes últimos anos mal vi, os beijos repenicados que senti pela última vez há uns meses e a gargalhada... meu deus, a gargalhada sonora da minha avó!
Falta-me a avó pré-Alzheimer. Falta-me um tempo em que viver era fácil, os dias em que a morte era um conceito que bastava agitar a cabeça com convicção e...puff. Desapareceu.

Estou aliviada por ela. Estava a sofrer muito e isso era visivel. Revoltei-me por vê-la assim, ela não merecia (alguém merece?). Mas chegada a hora, mesmo previsivel, é inesperado. Ter a noção de que não vou voltar a vê-la nem beijar-lhe a testa entristece-me.
Mas prefiro acreditar (conveniência, quiçá?) que ela está bem, seja lá onde for. E ela acreditava que ia para o céu e que ia reencontrar o amor de 50 anos.

Que assim seja. E que juntos olhem por nós. Por mim.

22.06.1922 - 29.08.2012